quinta-feira, 14 de junho de 2007

«Até Acabar com o Diabo»

(Romance, Editora Pergaminho, 1998)

Início do livro
Dizem que há pessoas que não fazem falta nenhuma ao mundo, que costuma haver pelo menos uma pessoa dessas em cada terra. E quando não há, dizem também, logo o destino se encarrega de a fazer chegar, por uma razão qualquer, ou até sem razão nenhuma. O Diabo era uma dessas pessoas, é o que quase toda a gente pensa, e se não fosse o mau-cheiro que lhe começou a sair da boca algumas horas depois de o burro ter entrado no café do Compadre Sabiniano, se não fosse por isso, nem teria valido a pena perderem tempo a enterrá-lo.
- Exactamente, senhora Domingas!
Um dia, logo pelo começo da manhã, Francisco fez-lhe uma espera em cima de um sobreiro. E quando ele passou montado no burro saltou-lhe para as costas e espetou-lhe uma faca de matar porcos na cabeça.
- Espetei-lha muitas vezes, senhor doutor, pelo menos umas dez vezes. Fui-lhe furando a cabeça sem ligar aos gritos que faziam levantar das árvores a passarada toda. E fiquei naquilo até o burro me atirar ao chão e desaparecer pelo caminho abaixo, com o filho da puta de rojo agarrado ao rabo.
(...)


Textos de opinião sobre o livro

Helena Barbas, Expresso, 06.06.98
Diabo à solta
- Um romance a cumprir promessas literárias, onde o insólito chega ao trágico
Um pouco mais calmo - sem a exuberância alucinante dos contos de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (1996), com mais profundidade psicológica do que em «Os Abençoados Fiéis do senhor S. Romão» (1997) - António Manuel Venda lança o seu terceiro livro: «Até Acabar com o Diabo». Aqui prova o seu crescimento como escritor, confirmando as promessas primeiras, prometendo novos caminhos. O espaço e as gentes desta sua narrativa continuam a ser os do Algarve, ainda pelos arredores de Monchique. Trata-se agora da aldeia de S. Bartolomeu das Osgas, sem «discotecas, nem bares, nem outros locais do género, nem cinema. Tirando o café do Compadre Sabiniano, que era o que era, pouco mais havia. Por isso convinha aproveitar tudo, a fuga do Corvo Espanhol, uma noite de núpcias, um marido que batesse na mulher ou até uma mulher que batesse no marido. Especialmente uma mulher que batesse no marido» (pág. 25). À míngua de distracções - para além do bordel e da Rádio Monchique - dá-se outra atenção aos pormenores da vida. Espia-se, coscuvilha-se, provoca-se, deduzem-se umas coisas e inventam-se outras. E por aqui as personagens assemelham-se às do Alferce nos comportamentos e no imaginário, desviando-se em direcção a um real mais supersticioso do que fantástico. Mais verosímil, embora igualmente divertido e intrigante, o insólito é suscitado pela crueldade nascida da ignorância - chegando ao trágico.
E começa assim: «Dizem que há pessoas que não fazem falta nenhuma ao mundo, que costuma haver pelo menos uma pessoa dessas em cada terra. O Diabo era uma dessas pessoas, é o que quase toda a gente pensa, e se não fosse pelo mau-cheiro que lhe começou a sair da boca algumas horas depois de o burro ter entrado no café do Compadre Sabiniano, se não fosse por isso, nem teria valido a pena perderem tempo a enterrá-lo» (pág. 9). Só lentamente se vão percebendo os motivos da inimizade entre o Corvo Espanhol - um louco fugido do asilo de Monchique, que na terra é conhecido por bruxo (e por não ser parvo, nem espanhol) - e o desconhecido que por essa altura chega a S. Bartolomeu: «Quando o tiraram da camioneta das oito, ainda a dormir e a ressonar bem alto, as pessoas começaram a juntar-se à volta dele para lhe verem a cara. Falavam muito, davam opiniões, ou acerca do roxo da pele, ou das borbulhas que lhe rodeavam a boca, ou então do nariz que parecia um tomate maduro. E o barulho acabou por ser tal que ele acordou, e logo no momento alguém começou a gritar.
- Só pode ser o Diabo!!» (pág. 33).
O Diabo assusta-se com o acordar repentino, com os gritos do baptismo, e esperneia vociferando premonitoriamente: «- Filhos da puta, se for preciso limpo o sebo a um!»
Um conflito tido por secundário (a ser devidamente acompanhado em reportagens de rádio e televisão) que se embrenha e interfere com a história primeira. De amor e morte, esta tem por heróis o pintor de paredes Pato Francisco e Adelaide, costureira como a mãe, vindas de Sabóia e recém-instaladas em S. Bartolomeu. Ele não sabe que foi amor à primeira vista: «Francisco ficara apaixonado desde o dia em que fora às novas costureiras e dera de caras com Adelaide. Ficara apanhado pelas pernas e pelos braços, pelo corpo todo se calhar, e o sentimento parece que foi recíproco. Por ela, para ficar junto dela, tinha aguentado os namoros à vista da mãe, tinha rasgado roupa para depois ir lá mandar arranjá-la, tinha até encomendado mais roupa do que aquela de que necessitava» (pág. 22). Nos tempos mortos, goza-se a lentidão e iras do Pato Francisco. Mais esperta, Adelaide protege-o. Volúvel, a aldeia vira-se para o Corvo Espanhol e o Diabo. Até que, de Sabóia, o passado traga a tragédia ao casamento pobre e feliz, a desgraça ao herói. É ele quem conta a sua vida - destrinçando-a das peripécias da aldeia - a uma discreta entidade que apelida respeitosamente de «senhor doutor».

Filipa Melo, Visão, 02.07.98
(...)
Para voltar de férias sabendo o que de melhor se faz na nova literatura nacional, reserve também um espaço «Até Acabar com o Diabo». É fácil surpreender-se com o universo do maravilhoso absurdo de António Manuel Venda, cuja originalidade já havia sido confirmada em «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (1996) e «Os Abençoados Fiéis do senhor S. Romão» (1997). Natural de Monchique, o autor tirou estas narrativas de uma gaveta onde as tinha encerradas desde 1989. Por sua vez, a escrita de «Até Acabar com o Diabo» data de 1994.
Dono de uma imaginação virtuosa que cruza com as memórias do Algarve da sua infância e adolescência, António Manuel Venda só escreve «quando [lhe] apetece». E recheia os seus livros com personagens fantásticas, donas de ainda mais espantosas acções. Neste caso, elas são um pobre pintor de casas chamado Francisco e alcunhado de «Pato», um Diabo que o é apenas de nome e tem a cara comida pelas abelhas que a mãe de uma rapariga por ele desonrada lhe atirou, ou o Raposo do Besteiro, disposto a contar inúmeras histórias. Pelo meio, acontecem crimes e decorre uma investigação policial, morcegos assobiam músicas de Roberto Leal e Marco Paulo. Um apurado domínio da língua portuguesa, uma ironia refinada e uma estrutura narrativa veloz arrebatam-nos da primeira à última página.
Uma boa razão para crer que a literatura portuguesa está viva e de boa saúde.

Appio Sottomayor, A Capital, 25.06.98
António Manuel Venda começou há pouco, pela simples razão de que a idade não lhe permite uma obra longa. Mas já leva no currículo um livro de contos que obteve um êxito pouco comum («Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade») e um romance premiado («Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão»). Novo romance surgiu há pouco («Até Acabar com o Diabo»), editado pela Pergaminho. Trata-se de uma narrativa que quase se lê de um fôlego - o que não significa superficialidade de tema ou de escrita. Num estilo directo e utilizando a linguagem «regional» a que já habituou o leitor, o autor revive o ambiente de remotas aldeias algarvias, mergulhando num mundo de superstições, medos e desconfianças que fizeram (fazem) parte da mentalidade portuguesa.

Antónia Santa Clara, O Independente, 17.07.98
Quando a uma imaginação prodigiosa se alia o dom de um contador de histórias o resultado é, sem dúvida, o convite a uma leitura compulsiva. È o caso deste «Até Acabar com o Diabo», último romance de António Manuel Venda, autor da colectânea de contos «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», cuja primeira edição esgotou em poucos dias e lhe valeu nomeadamente o prémio «Revelação Inasset», e do também premiado romance «Os Abençoados Fiéis do senhor S. Romão», ambos da Pergaminho. Licenciado em «Organização e Gestão de Empresas», este jovem escritor algarvio promete novamente impressionar o leitor com o hibridismo característico das suas narrativas, em que o quotidiano e o surreal se fundem num imaginário povoado por personagens tão típicas da realidade algarvia, e não só, como inesperadas. Um pintor que para vingar a sua Adelaide costureira mata o Diabo com uma faca de matar porcos é apenas a promessa das páginas iniciais. Porque melhores são sem dúvida as histórias do Raposo do Besteiro e a fuga do septuagenário Corvo Espanhol do asilo de Monchique (e as peripécias da cobertura televisiva e radiofónica) que, segundo os populares de S. Bartolomeu das Osgas, atravessa o país na sua vassoura de vender bolotas, transformadas em caramelos espanhóis. E os morcegos-rouxinóis que assobiam músicas do Marco Paulo e do Roberto Leal nas ruas da Baixa de Lisboa. O humor e a ironia a destacarem-se na nova geração de autores portugueses contemporâneos.


Apresentação
Texto de apresentação de José Correia Tavares, no lançamento do livro no Forum FNAC Colombo (Lisboa), 28.05.98
Apresentar um livro, seja qual for, é – isso tenho para mim – como apresentar um amigo. E, deste meu amigo de há tão breves dias, o romance intitulado «Até acabar com o Diabo», de todos os meus amigos o mais recente, começarei por vos dizer que, logo à primeira vista, se me afigurou ser pelo menos bem intencionado, a merecer-vos, vão por mim, circunspecto respeito, alguma deferência.
A meu ver merecida, justa, essa atenção que eu vos peço para dispensarem ao romance de António Manuel Venda, «Até Acabar com o Diabo». Livro com a chancela da Pergaminho, a cuja apresentação agora procedo. E este, todos os livros, como às pessoas, mesmo aquelas que são nossas amigas de há longa data, e apresentamos aos amigos, ou, a contrária também é verdadeira, nos são apresentadas, haverá que, tomando embora como boa, nos merecendo confiança a sua apresentação, conhecê-lo, ao livro, numa relação directa, sem interposta pessoa.
Apesar de ser eu o apresentador. Que, modéstia à parte, um pouco vaidoso de mim, até nem vos tenho desiludido por aí além, em matéria de amizade, às pessoas, aos livros. Mas, mesmo assim, e desculpar-me-ão a insistência, a este romance de António Manuel Venda que vos vou apresentar tereis que ser vós a lê-lo, conhecê-lo bem, para acaso ficardes, assim o espero, tal aconteceu comigo, seus amigos. A leitura do presente romance, que me ocupou boa parte deste fim-de-semana, sugeriu-me algumas considerações.
O meu primeiro contacto com a escrita de António Manuel Venda ocorreu em 1996, quando integrei, representando a Câmara Municipal, o júri do «Prémio Literário Cidade de Almada», que lhe foi atribuído pelo seu original «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão». Cuja leitura me agradou sobremaneira, por que não dizê-lo, me surpreendeu.
Desde logo, pela palavra à solta, mas sempre vigiada, uma escrita sem retórica, o discurso de quem, pretendendo contar uma história, várias histórias, sabe como fazê-lo, conhece todos os ingredientes com que prepara, meticulosamente, a refeição literária, nada de sopa de letras, que nos vai servir.
E era uma voz original, o que vai sendo raro, se é que não o foi sempre, transmitindo uma ambiência rural, na circunstância, a da serra algarvia, não influenciada, a voz, por qualquer figurino de neo-realismo tardio, nem na maneira de contar, nem naquilo que contava.
Na sua indubitável originalidade, tinha mais a ver com algo quase imaterial que anima os contos tradicionais, anima, no sentido de lhes dar alma, ainda hoje, com os rimances e as lendas, com as histórias de proveito e exemplo, percorrendo sem dúvida um espaço de que, com outra finalidade, também se reclama a etnografia.
O autor até arriscava meter, de quando em vez, um pé, ambiciosamente, na antropologia, e, mesmo nela, terreno mais difícil, aguentava-se, não escorregava, ia caminhando seguro, bem disposto e fazendo rir.
Era um romance aquele, assim acontecendo também neste, que englobava vivências múltiplas, algumas autênticos achados, situações pícaras, sempre alicerçadas num humor culto e inteligente, nem haverá outro. Por vezes, não muitas, a acção-intriga, por comezinha, quase resvalava no anedótico, mas, numa pirueta irónica, furtava-se-lhe, passando a outra cena, interligava este relato com aquele, de tudo isto resultando um romance bem construído estilisticamente, de bom ritmo narrativo e com notória qualidade estética.
A mim, a leitura deste trabalho então inédito e sem autor visível, porque assinado ainda com um pseudónimo, deu-me um grande gozo. Enquanto leitor, grato, por isso, a António Manuel Venda. Agradecimento que também é devido ao editor, Mário Moura, pois, acreditando nele, no original de «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», de um escritor ainda tão novo, o publicou, assim fazendo com que chegasse a alguns milhares de leitores, dado estatístico a revelar o quanto aquele livro agradou por aí.
Um romance de ambiência rural, coisa rara, cada vez mais, entre nós; a cair no goto de um público, de públicos marcadamente urbanos, acontecimento ainda mais raro será.
Já vai longa esta minha intervenção. O que não será pretexto para, comodamente, eu fugir à responsabilidade de falar, como me foi pedido, do romance «Até Acabar com o Diabo». Mas sem prejuízo de ainda tecer algumas considerações sobre ele, não muitas, nem de rigor crítico-ensaístico, tomar-se-á como bom, bem intencionado da minha parte, que tudo o que vos disse acerca do primeiro romance de António Manuel Venda também sirva para este.
Num e noutro, passando pelo seu livro de contos, «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», memória colectiva e cultura popular, esta no sentido antropológico, mais do que folclórico, são as duas traves mestras do seu edifício narrativo.
Desde logo, e como pontos altos, exponenciais, no gráfico da sua escrita, a constância da originalidade de um estilo próprio, com destaque para o picaresco, mais de Quixote e/ ou Sancho Pança do que de Cervantes, mas sempre de matriz peninsular, Gil Vicente, tantos outros, de ambos os lados da fronteira.
E o permanente apelo, página a página, à boa disposição do leitor, a qualidade estética ainda mais acentuada, decorrendo embora a acção deste novo romance nas mesmas áreas temáticas do primeiro, quase no mesmo imaginário também.
A narrativa de António Manuel Venda é inconfundível e a sua qualidade cada vez mais assinalável. A confirmá-lo como um dos nomes mais em evidência, sem dúvida merecida, na moderna novelística portuguesa. E, tão originais como ele, raros autores havendo.
Efabular assim não é coisa de todos os dias e está ao alcance de bem poucos. Aquilo que parece facilidade, é, afinal, o talento da facilidade conseguida, apontada à legibilidade quase imediata. Difícil como o caraças. Que o calão na minha boca não vos escandalize, pois encontrá-lo-eis um pouco por todo este livro de António Manuel Venda. Como, afinal, também nos anteriores.
Para quem a pretenda conseguir, à facilidade, de uma forma digna, vertebrada, isto é, mantendo sempre o eixo da própria rotação nas suas diversas translações, é difícil como o caraças, repito.
Não será afinal esse o recado que António Manuel Venda nos transmite, através da citação de Naguib Mahfouz, anteposta ao romance «Até Acabar com o Diabo»? À vossa consideração, ela é do seguinte teor:
«Terás de te aclimatar às trevas, ao silêncio e à solidão – enquanto o mundo se recusar a alterar os seus caminhos perversos.»
Longe da perversidade – «como a natureza manda e a imaginação compõe» – tudo fazer para conseguir ser fácil. Até acabar com o Diabo.
Que nem é tão mau como o pintam. Sabe disso, também ele, o personagem principal deste livro, pintor de profissão. Mesmo o cabo da GNR, para quem o Diabo é um suspeito como os outros. E o Diabo, este no romance, como pode ele fugir da cruz, se até a tem como sobrenome? Avelino da Cruz, um pobre diabo, bem vistas as coisas.
De resto, o imaginário colectivo português nunca tomou o Diabo a sério, pode bem com ele. Sobram os provérbios, os ditos populares que sistematicamente o subalternizam, ou até o metem a ridículo. E leia-se Gil Vicente, o «Auto da Barca do Inferno», por aí fora.
Isso, um Diabo a sério, de meter medo, só mesmo nas mitologias do norte da Europa. Quem, por aqui, como Fausto, faria um mau negócio vendendo a alma ao Diabo? Por estas bandas, nos seus tratos com a malta, o Diabo é sempre levado.
Mas estas são outras histórias. Com as quais não vos tomarei mais tempo. Se fizerem um apelo à vossa memória, todos se lembrarão de algumas.