quinta-feira, 14 de junho de 2007

«O Amor por entre os Dedos»

(Contos, AMBAR, 2005)

Início de um dos contos do livro («A Chegada Tardia do Macaco»)
A Lua estava cheia, tão grande e tão brilhante que iluminava a multidão que enchia a praça central de Cerzedos. Pelo menos era isso que Kate jurava a pés juntos, ao telemóvel para Lisboa. Sentia-se nervosa, não porque do outro lado estivesse um ministro - e estava -, mas porque não conseguia deixar de pensar no que poderia acontecer se o macaco se perdesse pelo caminho. O cão tinha-a acordado de manhã, cedo, muito cedo. Tinha surgido de repente, depois de um encontrão com a cabeça na porta do quarto. O jovem escritor de Santo Estêvão achava-lhe graça, gostava dele, ria de cada diabrura que o via fazer. Naquele momento, no exacto momento em que o cão saltou para a cama, Kate julgou ouvir o jovem escritor, o som de um sorriso, apenas isso, mas foi algo que logo se desvaneceu.
(…)


Textos de opinião sobre o livro

Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23.12.05
Sensibilidade e Paixão
É extremamente singular a aventura de António Manuel Venda num mundo cheio de fronteiras como é o da literatura portuguesa. O seu olhar não é o de um escritor urbano que tenta decifrar as misteriosas histórias que se vão desenrolando no país profundo. É, antes, o de alguém que comunga connosco essa raia atravessada por malteses que procuram um pouco de sentido para a sua vida. Obviamente o autor regressa ciclicamente a um território algures nas cercanias de Monchique, local de evasões, de sonhos e de onde é possível olhar para o vasto horizonte sem se ser contaminado pelo ruído típico das cidades.
Neste seu livro de contos, à volta dos encontros e desencontros entre um jovem escritor de Santo Estêvão e Kate, sente-se sempre a sensibilidade de um olhar às vezes inocente, outras vezes irónico, sobre o pequeno mundo português. Há sempre espaço para o absurdo, como no conto «Uma Nuvem Negra de Pássaros» ou em «A caminho de Rassebeque»: «Ao que se jurava a pés juntos mesmo na entrada do recinto da feira, nunca ninguém tinha avistado um cão a voar em Monchique. Muito menos um dálmata. (…) Bom, o que é certo é que o cão de Monchique, afinal, era de plástico. Nem tinha sido atirado de uma manta, se calhar por isso ser um hábito apenas de Espanha. O cão tinha-se soltado das mãos de uma criança e voado pelos ares, bem alto, todo direito, cada vez mais pequeno, até se tornar apenas num ponto quase invisível do céu.»
António Manuel Venda descreve o amor de um forma única, como se a inocência pudesse voltar a conquistar-nos («Kate continuava sem dizer nada. Mas também não mexia os pés do chão. De repente, o jovem escritor de Santo Estêvão viu-a espreitar por entre os dedos. Sim, ela espreitava por entre os dedos, só aos bocadinhos, mas espreitava. Se afastasse as mãos, quem sabe não mostraria um sorriso...»). Há nestas páginas uma fonte de histórias aparentemente simples que nos deixam a pensar no que temos andado a perder com o tempo: a capacidade de olhar.


Torcato Sepúlveda, Grande Reportagem, 24.12.05
Outra literatura
– «O Amor por Entre os Dedos», de António Manuel Venda, impõe um humor negro bondoso. Portugal está perdido, os portugueses talvez não.
António Manuel Venda (nascido em Monchique, em 1968) é uma figura singular. Há algo na sua literatura – tanto na novela «Os Abençoados Fiéis do Senhor São Romão», como no romance «Até Acabar com o Diabo», passando por esta série de narrativas, «O Amor por entre os Dedos» – nada costumeiro. Ligação intensa à realidade, urbana ou citadina; atenção aos costumes dos jovens contemporâneos; bonomia irónica que compreende, mas não desculpa. Os contos de ‘O Amor por entre os Dedos’ têm dois fios condutores que lhe marcam o carácter, mesmo quando fora do centro da acção: o jovem escritor de Santo Estêvão e a extraordinária Kate, a bela rapariga de Cerzedos por quem o jovem escritor está apaixonado. Nesta quadrícula narrativa encaixa certa província – adivinha-se o Sul do Alentejo e a serra algarvia – e os tiques citadinos de uma modernidade pacóvia. Santo Estêvão e aldeias adjacentes são uma espécie de Macondo portuguesa, roçando pudicamente o fantástico; mas a Lisboa de António Manuel Venda é mais pacóvia do que a província. O conto «O Ponta de Lança Espanhol» prova-o, com os seus tiques de oralidade futebolística.
O autor é um lusitano que se reconciliou com o destino. Critica-nos, mas sabe que seremos sempre assim. A sua ironia bondosa lembra o escritor Alphonse Allais (1854-1905) de quem o surrealista André Breton dizia, em «Antologia do Humor Negro»: «(…) É exímio em dificultar a vida do indivíduo satisfeito, bêbado de truísmos, cheio de si, com quem se cruza todos os dias na rua.» Surrealismo… Certos contos de António Manuel Venda parecem – com o sarcasmo a menos – desenvolvimentos de «anedotas» do surrealista português Mário Henrique Leiria (1923-1980) em «Contos do Gin Tonic». A prosa de António Manuel Venda é outra literatura.

Fernando Venâncio, Expresso, 13.05.06
Desde que começaram a surgir, há dez anos, os contos de António Manuel Venda mantêm-se reconhecíveis à primeira abordagem. Uma ingenuidade desarmante e patentemente trabalhada desenha cenários que, sendo deste mundo, descansam em altas improbabilidades. Ou é a Natureza que gravemente desvaira, ou é o reino animal que ganha um imprevisível discernimento, ou são os poderes estabelecidos, locais ou nacionais, que entram em mais que habitual tresvario. Quando não for tudo isso ao mesmo tempo. Daí, o resvale mental colectivo está sempre a um passo, que, não raro, sobrevém rapidamente. Assim também em «O Amor por entre os Dedos», que reúne doze contos objectos de oferta, há uns bons anos, a escolhidos e internetizados leitores. Em casos de particular pilhéria, são autênticos sketches do Gato Fedorento avant la lettre. Perante este doce ambiente de geral desatino, só admira não sucederem verdadeiras desgraças. Mais: quase sempre tudo volta à normalidade (relativa, nunca fiando), podendo sustentar-se que nada adveio ao mundo de grandemente perturbador, não podendo, até, afirmar-se com segurança que algo de extraordinário se passou. De resto, várias constantes percorrem o volume: a localização algarvia dos eventos, a presença do «jovem escritor» local a quem Lisboa se rendeu, a paixão do próprio pela livreira alentejana Kate. E os media, que tudo farejam, tudo amplificam. Até ao Apocalipse, que o último conto, «Medo de Raflin», de felicíssima feitura, transmitirá em directo.

Luís Mateus, Portugal Diário – http://www.portugaldiario.iol.pt/, 24.07.2006
Para lá da realidade
– António Manuel Venda traz-nos um mundo de cães que falam e de bandos de pássaros que cobrem cidades inteiras. Para ler, sem preconceitos.
Seria um bom livro para David Lynch filmar, e o realizador nem teria de mexer muito para que todos reconhecessem a sua marca. António Manuel Venda procura o nonsense em cada diálogo, tenta surpreender-nos com episódios bizarros e anormais e não poupa os homens do poder, com socos sucessivos no estômago, sempre que representa um ministro, um presidente de câmara, os seus assessores ou mesmo o resto da população. «O Amor por entre os Dedos» (AMBAR, 2006), o amor de um «jovem escritor» pela dona de uma loja de livros, é a fachada para um trabalho mais abrangente, que navega quase sem rumo sobre a imaginação do autor.
Ao ler os diálogos quase ingénuos, as descrições quase cínicas dos intervenientes e das suas acções, poderíamos facilmente transpor as suas personagens para mundos como o de «Alice no País das Maravilhas», de Lewis Carroll, ou a Londres-de-Baixo de «Neverwhere», de Neil Gaiman. Depois, há cães que falam, gigantes assustadores, extraterrestres com caras em bico, nuvens de pássaros que cobrem cidades inteiras e o misterioso Raflin. Tudo no Alentejo profundo, entre Cerzedos, Santo Estêvão, Marmelete e Monchique.
«E em Monchique? Aí, o presidente da câmara tinha querido saber o que se passava. Esse é que era bem espertalhão... Como tinha engordado em tantos anos... E os espertalhões... O presidente da câmara tinha visto neles e no seu projecto de Rassebeque uma boa ajuda. Talvez da vila houvesse quem os acompanhasse na viagem para Rassebeque, quem sabe até tornando-a conhecida internacionalmente. A publicidade... Como o presidente da câmara de Monchique acabou por aplaudir os trinta e dois voluntários...», escreve António Manuel Venda, desta vez bem mais directo do que em parágrafos anteriores.
- Sem hesitações e preconceitos
«O Amor por entre os Dedos» é o sétimo livro de ficção de António Manuel Venda e percebe-se que o autor chegou a um estado de autoconfiança em relação à escrita e às suas ideias. Segue-as até ao fim, saltando finais de capítulos como barreiras, sem se vislumbrar o mínimo de hesitação. É também com essa confiança que chegamos à última página, ao último conto que compõe o romance do «jovem escritor» com a bela Kate, conscientes de que não perdemos o nosso tempo.
Não se trata de um livro perfeito, mas acredito que não o pretende ser. Transporta a imaginação do autor para o papel – a de António Manuel Venda parece não se esgotar nas sete obras já escritas – e se esperarmos encontrar o inesperado ao virar da página, se não partirmos com preconceitos para a sua leitura, ficamos felizes. Por termos tido um bom livro por entre os dedos.


Apresentações

Texto de suporte à apresentação de José Alberto Quaresma, em Monchique (Dezembro de 2005)
Um bom algarvio (ou mau, se quiserem), como eu, nunca sabe se foi sorte ou azar aqui ter nascido. Vivemos muitos ou poucos anos com esta dúvida. Um dia a dúvida deixa de existir. Nunca nos será devidamente desfeita.
Um homem afasta-se uns bons anos do Algarve. Nunca se afasta. Leva consigo esta luz forte. Descobre-a ou inventa-a em qualquer latitude. Farisca os cheiros da sua terra em todos os lugares do mundo. Não tem outro remédio.
No nosso tempo, essa luz continua a cintilar. E esse cheiro a reacender. Até, sabe-se lá como, em qualquer computador ligado à Internet. Para mal dos nossos pecados.
Pode passar muito tempo. Mas esse sentir profundo, quase a ranger a melancolia, como um pequeno e doce sobressalto, resiste ao longe. Lá bem no fundo, devem ser pequenos medos, ou resquícios deles, que vêm do remoto reduto da infância. E moem muito, sem se saber por quê.
***
O Algarve num passado não muito distante – um século, na longa viagem da gente, é ontem – salinou-se nos pequenos medos, numa melancolia sólida, num ensimesmamento agridoce, que pouco passou para além da modorra, do torpor ou da indiferença. Ressoou por séculos na literatura oral, que passou de geração, pela voz das mulheres e de alguns homens, e que foi retirada do esquecimento, aqui e ali, nas recolhas etnográficas.
Tudo isto não deu escrita abundante. Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga e, mais especificamente no Algarve, Xavier Athaide de Oliveira, Estanco Louro ou, aqui em Monchique, José Gascon, entre poucos mais, registaram o possível.
Não muito, desse acervo oral, foi extraído para moldar uma escrita ficcional vigorosa. Manuel Teixeira-Gomes e, mais recentemente Lídia Jorge, criaram, desse terriço, harmoniosas páginas.
A poesia talvez tenha roubado mais dessa matéria-prima, mas muito em silêncio, como convém: de João de Deus a Paulo Teixeira – passando por Ramos Rosa, Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Nuno Júdice –, esgravatou-se o belo até mais além, aos lençóis freáticos espirituais do Mediterrâneo.
Não saberemos qual será o justo peso do nosso passado nas futuras explosões de criatividade da literatura que irá ser feita no Algarve ou com o Algarve. Nem, tampouco, a intensidade cultural e estética que irá subsistir nesta terra que não cuida da sua memória, deslumbrada apenas com sol e betão. Não sou optimista. Mas quem cá ficar, daqui a umas dezenas ou centenas de anos, que me esclareça. E me envie boas novas para o meu e-mail privado do Inferno, onde deverei andar a penar por esse tempo. Aguardarei com curiosidade, sem dúvida.
***
Tudo isto para entrar mais directamente no que aqui nos traz.
Há uma esperança poderosa que é muito mais que uma certeza consolidada. E é surpreendente que venha de uma geração, supostamente sem memória do passado.
António Manuel Venda é essa, quase solitária, certeza aqui no Algarve. Com este apelido, Venda, tinha de ser, à força, licenciado em Gestão de Empresas e pós-graduado em Marketing. Os académicos não devem achar graça nenhuma que estas habilitações se intrometam no Olimpo da Literatura. Só que o intruso é muito bom. Não há nada a fazer. E anda lá por mérito próprio. E não se pense que o homem já publicou sete livros de ficção, e recebeu vários prémios literários, porque sabe de Marketing…
António Manuel Venda é muito mais do que um portador positivo dessa química inorgânica da terra e dessa substância dos sonhos, vindas do fundo do tempo algarvio, que se expressava nos «medos», «silêncios», «títulos», «espíritos», «sonhos», «quebrantos», «almas penadas». Todos estes medos e encantamentos frequentavam intimamente os nossos antepassados algarvios, sobretudo do barrocal e da serra, onde todos temos sempre (mesmo os que como eu nasceram à beira-mar) um familiar próximo. E vá lá saber-se porquê? O quê? Esta intimidade.
Será que António Manuel Venda, em tempos remotos, que remontam ao século XIX, conviveu de perto, entre outras e outros, com as «jãs» que tinham a virtude espantosa de deixar «tão afiado como o cabelo» o linho que «se deixava à noite no borralho do lar»?
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Provavelmente conviveu. Como agora com outros, como o Gagueline Gagueloso que António Manuel Venda vos dará a conhecer. É um privilégio conviver com gente boa ou ruim, bem e mal criada. Filhos nossos, pois claro. Nossos não, do António Manuel Venda. A sua imaginação possante parece ter as raízes ainda mais profundas do que o chão da casa dos seus avós até ao centro da terra, onde ouvia ecos profundos deste Algarve granítico, quase imutável até à primeira metade do século passado.
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Esta nova colectânea de contos «O Amor por entre os Dedos» volta a trazer-nos a fulgurância da fantasia poderosa de António Manuel Venda, já evidenciada nos seus anteriores livros, do seu primeiro «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», já quase com dez anos, até ao romance de 2003, «O Medo Longe de Ti».
Este «O Amor por entre os Dedos» é constituído por uma dúzia de contos. O fio romanesco de cada um deles vai soltando pequenos filamentos que recorrentemente tropeçam, ao de leve, no «jovem escritor» e na sua apaixonada (a «gira» Kate), remetendo sempre, ainda que de forma muito fragmentária, para o primeiro dos contos que dá o título ao livro.
São histórias, assombrosas, que nos divertem, que nos encantam, que constantemente fazem repenicar a cordinha sensível que nos vem distendida da infância. São textos escritos numa linguagem concisa, clara, muito despojada.
Esta linguagem, muito contida, parece entrar em conflito com a exuberância fantasiosa do conteúdo, de textura muito barroca. Só na aparência. A forma (muito próxima da raiz popular do relato oral) serve na perfeição o conteúdo, copioso de engenho e de devaneio.
São múltiplos registos, tantos e tão incertos, que, às vezes, até parece que somos nós, leitores, que estamos a inventá-los ou a ouvir os seus ecos na surdina das nossas primeiras marés uterinas. Textos de uma ironia precisa, subtil, e de grande sentido de humor que revelam, por parte do autor, uma capacidade notável de efabulação e um profundo conhecimento da sociedade portuguesa, seja da mais cosmopolita, ou da sociedade algarvia do interior (da serra e do barrocal) e do litoral, lugares onde erram as suas múltiplas personagens.
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Não vos revelo nada que vos possa perturbar o prazer de ler, e desvendar, os mistérios espantosos destas narrativas. Mas só vos queria levantar minúsculos e vagos sinais para vos aguçar o apetite.
Temos de tudo. Muito do que a vida nos segura. Muito do que a imaginação de qualquer comum mortal, como nós, não alcança. A imaginação de António Manuel Venda faz guindar o irreal ou a mentira ao pódio da arte. O sonho que se insinua na realidade e se mete por ela adentro. Ou a realidade que se transfigura nos lugares inventados, próximos dos lugares reais, e que com eles se confundem, na serra de Monchique ou no Alentejo.
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É o medo do «jovem escritor» de Santo Estêvão, o medo vindo de dentro, de si, aquele medo que vai ficando registado nos pequenos movimentos do sismógrafo da alma, no primeiro conto do livro «O amor entre os Dedos». É a inquietação da viagem e da boleia a desconhecidos (Alguém, hoje, ainda dá boleia a desconhecidos?). E as cheias devastadoras que, na ressaca, fazem aparecer uma ilha estranha observada, por um padre, pelo buraco de pendurar a cruz na parede. E o presidente de câmara que tem uma assessora competente só para lhe escovar a caspa do fato e que se aperalta na importante cerimónia de inauguração de um busto. E o colossal Gagueline, já citado, que traz aterrado o bom povo de Marmelete; Marmelete, que tem a sorte de lá viver um tal Zifardo, homem de respeito… E o macaco que não chega no horário previsto para abrilhantar a festa de Cerzedos. E o cão que é visto a voar à entrada do recinto da feira de Monchique. E a praga de pássaros que se abate sobre a minha terra, Portimão, fazendo do dia noite. E o terror dos relvados, o ponta-de-lança espanhol, o poderoso Kiko Trujillo…
E muito mais não ouso revelar. Nem desarranjar, com descrições mais ou menos corrompidas pela minha leitura pessoal que é, como qualquer outra, dificilmente transmissível.
***
Há algarvios que nos merecem muito. Transportam vestígios de nós mesmos, dos tempos imemoriais. Revelam-nos, de forma admiravelmente criativa esses vestígios, escondidos no fundo da memória, ou silenciados com o desaparecimento das gerações anteriores. E, por uma secreta alquimia, transmutam-nos em ficção inédita, de rara beleza, como este «O Amor por entre os Dedos».
António Manuel Venda faz-nos descobrir que esses vestígios são não apenas nossos. Atingem a universalidade, de expressivamente originais que são.
Devemos estar infinitamente gratos a António Manuel Venda. E só há uma forma de mostrar reconhecimento. Inclinar a cabeça e ouvir pacientemente a sua voz. Ouvir os rumores deixados luminosos no labor da sua escrita. Isto é, ler. Ler o que nos eleva. Ler esta prosa que nos reconcilia com a nossa terra e, através dela, com o resto do mundo.
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Nunca o saberei, como disse no início, se foi sorte ou azar ter nascido no Algarve. Sei que é sorte, e sorte grande, ter um conterrâneo com esta rara sensibilidade e que, no silêncio da caligrafia, atinge tamanha fulguração.

Texto de suporte à apresentação de Paula Campos, no Porto (Janeiro de 2006)
Um livro é sempre um pedaço de história ou de histórias em que, na diversidade de temas e formas de escrever, as mais diferentes motivações se entrecruzam num desfilar de personagens infinitas, despertando em nós a curiosidade mórbida de novas experiências, ou melhor ainda, uma busca desenfreada de processos de identificação de emoções e sentimentos que são nossos, ou de alguma maneira foram vivenciados por cada um de nós.
O amor por entre os dedos… Se, como diz o poeta, os olhos são o espelho da alma, o título de um livro é a porta de entrada, a energia motivacional de quem quer perceber, de quem deseja interpelar e sondar os interesses e as motivações do autor, na esperança de que a mensagem consiga responder a um vazio que a nossa vida precisa de preencher, na esperança de encontrar alguma coisa de que andamos à procura. Outro dos motivos que nos faz ler uma obra é aceitarmos o desafio de alguém que no-la aconselha, alguém significativo a quem reconhecemos sensibilidade e intuição.
Porque lemos livros que falam de amor?
O amor ocupa um lugar particular na história da humanidade e é talvez, pelo papel central que ocupa nas nossas vidas, um dos únicos temas verdadeiramente universais. O amor numa ou noutra dimensão, num ou noutro estado, já foi por todos nós experimentado e sobre ele melhor ou pior temos uma versão própria. Assim, ao assumir múltiplas facetas, é exactamente a sua diversidade que o torna único e irrepetível.
Este livro de que vos falo hoje é um livro que só quem acredita que o amor é em todas as dimensões uma forma de arte consegue ler. Isto porque a descoberta deste amor só é possível através da ficção de cada uma das personagens e de cada um dos locais, que de semelhante só têm o pano de fundo do universo rural algarvio, terra natal do autor, e alentejano.
Acredito que cada livro e cada estilo literário escolhido reflectem sempre o resultado de um mecanismo projectivo, por vezes inconsciente, do seu autor. Com a sua leitura, conheci um pouco mais do António, do bocado de si que não consta da biografia e que a sociedade não conhece. Assim, qualquer obra literária é também um acto de criação e de relação individual.
O amor por entre os dedos… Longe, na solidão, o amor era um sonho, uma imagem, um tu que preenchia o exacto lugar da ausência, uma vida inventada que tinha as cores do paraíso. Este amor protagonizado através da relação de um jovem apaixonado, cuja identificação ao longo da obra é a de «jovem escritor de Santo Estêvão», e de Kate, a bela rapariga de Cerzedos.
É aí, na imaginação nossa e na dos outros, que tudo começa. Sobre o amor sonhado, vivido, o autor solta-se, deixando que as palavras busquem a sua essência num sonho apaixonado que vive, mais do que da presença, da ausência do objecto de amor e dela se alimenta.
No entanto, logo a seguir este amor sob forma de anseio, de desejo, de sentir, vai ficando contido com a aproximação do objecto amado, e o medo… «Sim, era o medo, de novo o medo, o de sempre. Começava a sentir-se inquieto, nervoso, como se o medo entrasse mesmo através dos vidros do carro. De onde é que viria o medo?/ Estava atrapalhado, fragilizado, fosse lá pelo que fosse. Pelo medo, pelo medo principalmente. Sabia que era ali a direcção da casa da família de Kate, onde ia ficar alguns dias antes da viagem para as ilhas. O jovem escritor hesitou.»
Este amor contido por uma mão entreaberta onde o medo se esconde nos dedos, sinal da materialização dos sentimentos, deixando o espaço entre esses mesmos dedos para o fluido emocional, imaterial, que caracteriza o sentir e onde sem forma nem espaço o amor pode circular.
Este sentimento de ausência surge camuflado num medo que simbolicamente se esconde numa mão entreaberta, onde o amor contido espreita por entre os dedos, em ensaios de contenção e devaneio à procura da sua identidade.
«Kate estava com a cara tapada. Tinha conseguido tapar quase toda a superfície da cara, com as mãos ao lado uma da outra… O jovem escritor pensou que ela de repente ia começar a chorar, se calhar de raiva. O que é que ele faria se isso acontecesse? O jovem escritor pensava em tudo aquilo, pensava em tantas coisas, e tremia.»
Apercebemo-nos pois que em matérias de amor, o pensamento e a razão, talvez por esta desconhecer a linguagem do coração, entram muitas vezes em conflito, conflitos estes que muitas vezes duram a existência e, em muitos casos, só a eternidade consegue libertar. A razão impede, contém, controla, causa muitas vezes insegurança, incerteza. «O Jovem escritor não sabia o que fazer, nem se sentia com coragem para dizer uma palavra que fosse. Apenas tremia.»
Como se de repente assistíssemos a um confronto do humano, do sobrenatural e da natureza do amor debelados numa esperança que o olhar mesmo que por entre os dedos consumasse o milagre da explosão do desejo contido, nem que somente expresso num sorriso. «De repente, o jovem escritor de Santo Estêvão viu-a espreitar por entre os dedos. Sim ela espreitava por entre os dedos, só aos bocadinhos, mas espreitava. Se afastasse as mãos, quem sabe mostraria um sorriso…»
De seguida, o amor passa para uma constante comunicação e comunhão entre os três mundos, o sobrenatural, o humano e o da natureza. E de forma surpreendente somos de repente brindados pelo autor com um desamarrar destas emoções contidas, transformadas de diferentes formas numa série de contos que surgem como uma possibilidade de conciliação entre a natureza mais intrínseca do amor e a cultura, capaz de inspirar uma nova visão do amor.
Tudo o mais é narrado ao longo de doze contos de ficção, num tom irónico, nalgumas situações de um sarcasmo subtil mas contundente, onde o autor vai construindo metaforicamente as suas histórias, de forma insólita e intangível – diria mesmo que em alguns momentos a tocar o irrealismo intelectual e existencial.
Numa linguagem carregada de simbolismo, onde os regionalismos dão força à mensagem, o autor vai-nos fazendo descobrir um novo tipo de sociedade, a necessidade de uma nova organização humana cujos valores se aproximem mais do nosso sentir.
Carregado de metáforas que alegoricamente nos levam além do real, do óbvio, o livro é um tiro no escuro, um tiro que só se sabe que é disparado, não se sabe quem será o alvo.
O alvo é o coração e a razão de cada um de nós, leitores, desencadeando um desafio simples mas de grande profundidade e complexidade existencial. No final, fica a reconstrução de cada uma das histórias no livro de contos da nossa vida.