quinta-feira, 14 de junho de 2007

«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações»

(Romance, Temas e Debates, 2000)

Início do livro
Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns, de certeza, são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses. Esses são bem reais e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.
- Deve ser porque lhe espantam os peixes.
- Ou então, amigo, é mesmo por ruindade.
A velha Luzia dos Engreneiros já não tem nariz. E tudo porque um dia, ainda em rapariga, lhe explodiu o caldeirão dos preparos enquanto estava a tomar-lhes o cheiro. Só que isso nunca lhe deu grandes aborrecimentos.
- Ela nem se foi abaixo, até porque não era criatura para isso, amezinhou-se sozinha e ao fim de dois ou três meses apareceu com um nariz novo. Claro que se tratava de um nariz dos de carnaval, daqueles com uns óculos pretos por cima, mas como já uma vez ouvi dizer, minha boa e apreciada amiga, não se pode ter tudo nesta vida.
- É capaz. O mais certo é nem na outra vida se conseguir ter tudo.
Isso não se sabe bem, porque de lá, da outra vida, segundo por aí se diz, só voltam os fantasmas.
- Voltam os que voltam!
- Não, voltam todos. Os fantasmas voltam todos, por isso é que são fantasmas e têm aquelas particularidades absolutamente inegáveis, ainda que um pouco ambíguas, que depois os escritores aproveitam para os romances e que em alguns casos, mais cedo ou mais tarde, acabam nos ecrãs de cinema, ou pelo menos em séries de televisão. Se os cabrões não voltassem, está-se mesmo a ver, então é que não eram fantasmas.
- ...
- Não sei se me fiz compreender?
- Claramente, senhor professor, claramente. E neste ponto deixo a conversa.
(...)


Textos de opinião sobre o livro

Helena Barbas, Expresso, 18.11.00
Delírios
- O novo romance de António Manuel Venda: uma exuberância narrativa a não perder
Vai crescendo o rol dos livros publicados por António Manuel Venda. Estreou-se com uma série de contos em «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (Pergaminho, 1996); seguiu-se-lhe uma novela, «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» (Pergaminho, 1997), avança para o romance com «Até Acabar com o Diabo» (Pergaminho, 1998), regressa aos contos em «O Velho que Esperava por D. Sebastião» (Pergaminho, 1999) - o menos conseguido -, para retomar o romance no seu novo livro, «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações». Um sistemático delírio narrativo, histórias absurdas a um ritmo alucinante, cheias de humor e ironia, contadas numa linguagem rigorosa, que enfeitiçam o leitor.
Neste momento é já possível falar de um universo ficcional particular com características próprias, de um tipo de escrita pessoal, de um «estilo» (pese embora a palavra estar teoricamente fora de moda), regidos por uma invulgar maturidade, um profundo conhecimento e uma brilhante exploração da língua portuguesa.
Em «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», a nota predominante são as recorrências. Encontram-se aqui os mesmos espaços, a mesma geografia imaginária que preside aos textos anteriores - Alferce, S. Bartolomeu das Osgas -, agora substituídos por Foz de Zimbrais. O autor convencionou relacioná-los com Monchique, enquanto lugar da sua infância. Mas, na verdade, além de uma ou outra referência ao nome daquela urbe feitas pelas personagens nos textos, nunca nos oferece uma descrição específica que permita, exclusivamente, restringir qualquer das narrativas a um único espaço (nem mesmo quando das «experiências» da ficção científica). Porque Venda não faz descrições: os cenários são referidos pelas personagens, uma casa, uma árvore, um rio.
A recusa das descrições não se limita aos espaços, estendendo-se também às personagens. Estas são caracterizadas pelo nome-alcunha, pela profissão, pela linguagem. Surgem aqui igualmente agrestes, primárias nas suas preocupações: não têm vocabulário para exprimir uma angústia existencial mais erudita, pelo que retombam na magia, ou entram pelo absurdo adentro - todas têm as suas manias particulares, e há sempre uma com o desejo obtuso de voar:
«A princípio, meu amor, ninguém imaginava que o sonho de voar do Zé da Silva acabasse por levá-lo à morte. As pessoas, em Foz de Zimbrais, habituaram-se depressa à presença dele no Largo da Igreja, tanto que ao fim de uns tempos já só lhe ligavam quando era preciso explicar a situação aos turistas. Nem quando o Escalavardo Homenzinho apareceu morto na armadilha se convenceram de que ali também podia acontecer uma desgraça. Afinal, tratava-se dos dois casos das redondezas em que homens se julgavam bichos. Ou melhor, um tinha-se julgado bicho, o falecido Escalavardo Homenzinho, e o outro queria ser bicho, o Zé da Silva, candidato declarado a pardal-de-asa-branca. Para não falar, é claro, no Raposo do Besteiro, que era mesmo uma personalidade para ser colocada num outro patamar.
- O Raposo do Besteiro, aquele pobre diabo, diz por aí à boca cheia que é filho de mãe raposa e de pai desconhecido.» (pág. 35).
Por sua vez, aos animais vão ser atribuídas características e desejos humanos, como ao lagarto das Cimalhas, que do cimo de um pessegueiro assobia às lavadeiras:
«Por isso é que o lagarto das Cimalhas era um bicho triste. Apesar dos assobios quadrados, que davam a ideia exactamente do contrário.
- Oh Diabo!...
- Elas foram todas umas putas para o desgraçado! Se ele tivesse comido a mão a uma, como no outro dia fez ao Mau Serviço, da maneira airosa que toda a gente sabe, se ele tivesse tido boca para isso, amigo, até tinha sido muito bem feito.
O Mau Serviço esteve preso em caxias durante muitos anos, talvez uns cinco ou seis.» (pág. 15).
Assim se encadeiam as histórias, entre associações inesperadas, encaixes insólitos, memórias súbitas de interlocutores sempre sugeridos por um título, uma profissão. Um encadeamento que vai recuperar momentos e episódios dos livros anteriores, reescrevendo-os e reinscrevendo-os no novo contexto, atribuindo velhos sonhos a novos sonhadores.
Já a autocitação vai exibir-se e prolongar-se nas embirrações:
«- Há pessoas que não fazem mesmo falta nenhuma ao mundo, como uma vez li num livro de um rapazito de cá que tem a mania de que também é escritor.
- Uma perigosa embirração?!
- Exactamente. Mas como eu ia dizendo, ou ele escreveu, há pessoas que não fazem cá falta nenhuma...» (pág. 93).
Mas há outras, a escrever assim, que fazem.

Linda Santos Costa, Público, 02.12.00
Conversa na venda
É indiscutível que António Manuel Venda é senhor de um universo privado delimitado não tanto pelo espaço físico (o Algarve nas imediações da serra de Monchique, povoações com nomes imaginários a coexistirem com outras que têm existência nos mapas), que serve de cenário às suas histórias, mas pela natureza da situação narrativa (diálogos que se entrecruzam e criam um espaço narrativo em três planos) bem como pela matéria narrada (fantasmagorias atravessadas por referências à actualidade política e social portuguesa) que se deixa adivinhar no título do último romance - «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» - e tem antecedentes em anteriores contos e romances (as autocitações lembram isso mesmo).
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» configura uma estranha (insólita) situação narrativa em que um narrador na primeira pessoa se dirige amorosamente («meu amor», «querida», «carinho», «flor» - são algumas das expressões utilizadas) a alguém (mulher? sereia? peixe?), fornecendo uma espécie de mote que serve de enquadramento (sugestão, resumo, comentário) às vozes de narradores que irrompem não se sabe de onde e que, por sua vez, contam, comentam, discutem episódios mais ou menos fantásticos ocorridos na muito real povoação (mesmo se oriunda da geografia imaginária do autor) que dá pelo nome de Foz de Zimbrais. O leitor é colocado na situação de alguém que assiste, em directo, a conversas que são como que apanhados que retratam (ou fazem o «ponto da situação», como refere o autor em jeito de prefácio) o estado das coisas em Foz de Zimbrais.
Poder-se-ia pensar num programa de rádio que captasse as vozes de interlocutores que, numa venda, algures no Algarve, falassem animada e anonimamente (os nomes substituídos pelas funções - professor, doutora, engenheiro de porcos, jornalista, consultor independente, padre) sobre acontecimentos protagonizados por personagens bizarras (homens e animais a trocarem as respectivas naturezas e a confundirem-se), cujos sonhos e embirrações (manias) atiram para situações aventurosas e estranhas. E, de caminho, como quem não quer a coisa, lá vão tecendo comentários sobre a actualidade nacional, da política agrícola comum ao erro de contas do primeiro-ministro, da certificação da qualidade à declaração de Mário Soares de que não há pobres em Portugal, etc.. Tudo embrulhado em provérbios, palavrões e trocadilhos que são a fiel tradução da filosofia popular portuguesa. Uma conversa na venda do Macacácio cheia de cor local e nacional.
De certo modo, António Manuel Venda cria um mundo que é a versão culta (sem erros de gramática) de «A Conversa da Treta». E não faltará quem se ria e aprecie este humor inocente e amável.

Maria João Caetano, Diário de Notícias, 09.10.00
O país real através da escrita surreal
- «Nenhum Olhar», de José Luís Peixoto e «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», de António Manuel Venda, na Temas e Debates
José Luís Peixoto é alentejano de Galveias e tem 26 anos. António Manuel Venda é algarvio de Monchique e tem 32 anos. Mudaram-se para Lisboa para cumprir os estudos universitários e por aí ficaram, trazendo consigo as memórias e os cheiros das suas terras, histórias e personagens que não conseguem manter afastadas dos textos que escrevem, mesmo que o quisessem. Através da Temas e Debates, dão-nos agora a conhecer dois novos livros: «Nenhum Olhar», de Peixoto, é o seu segundo romance, depois de um percurso insistente na poesia, e é o seu primeiro livro que não tem escrito na capa «edição de autor». «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações», de Venda, é o seu primeiro título para a Temas e Debates, depois de quatro obras editadas pela Pergaminho, entre elogios da crítica e o desconhecimento do grande público.
Em comum estes dois autores têm mais do que uma viagem até à capital, muitos textos publicados no DN Jovem e o nome de uma editora. Ao contrário dos novos escritores «urbanos», que querem acompanhar o ritmo de vida nas cidades, nos livros de Peixoto e Venda a terra é castanha e o tempo passa devagar, as povoações são pequenas e as figuras que nelas habitam não estão agarradas a nenhum tempo. Têm nomes e vidas estranhas.
Como a velha Luzia dos Engreneiros, que já não tem nariz, - «tudo porque um dia, ainda em rapariga, lhe explodiu o caldeirão dos preparos enquanto estava a tomar-lhes o cheiro» e, agora, a velha usa um nariz de Carnaval, «daqueles com uns óculos pretos por cima». Ou os dois irmãos siameses, Elias e Moisés, «a mão direita de um e a mão esquerda do outro unidas pelo dedo mindinho», inseparáveis para sempre, como bonecos recortados numa fileira em papel. Assim apresentadas, até é difícil dizer que figuras pertencem a que romances, mas que não se iludam os futuros leitores destas obras, pois as escritas de Venda e Peixoto encarregam-se de distinguir o que o ambiente surrealista poderia tornar semelhante.
Uma feliz coincidência faz com que José Luís Peixoto e António Lobo Antunes apresentem no mesmo dia os seus novos livros. Não seria preciso dizê-lo, mas o autor de «Morreste-me» (editado no início do ano) lê Lobo Antunes com gosto, desde cedo. Terá aprendido com ele a dar voz às diferentes personagens e a diluir o discurso directo numa prosa que, o autor reconhece, caminha a passos largos para a poesia. «Não acredito em prosa poética, não sei o que isso é», afirma José Luís Peixoto na timidez da sua primeira entrevista. E, no entanto, escreve que «talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu, e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu».
Nota-se que trabalha exaustivamente cada frase, escolhendo minuciosamente as palavras, trocando-lhes a ordem, repetindo ideias como refrães ritmados. Fernando Pessoa, Ruy Belo e Herberto Helder são os seus poetas de eleição, na prosa escolhe «o incontornável» padre António Vieira, Faulkner e Dostoievski. Das leituras de juventude, de Raul Brandão a Soeiro Pereira Gomes, guardou o retrato cru do seu Alentejo, mas ficou ainda com mais vontade de ir para além dele e descobrir «o que é o Alentejo de cada alentejano». Alentejo é palavra que não se lê em «Nenhum Olhar» e, no entanto, ele está lá, em cada raio de sol e em cada casa caiada. Da mesma forma que, por mais voltas que dê, António Manuel Venda regressa sempre à sua serra algarvia. Desde «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», o primeiro título, publicado em 1996.
Depois deste, vieram «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», «Até Acabar com o Diabo» e «O Velho que Esperava por D. Sebastião» - os títulos extensos transformaram-se quase na imagem de marca deste gestor que também escreve livros. Ou será que um escritor tem de trabalhar para ganhar a vida? Se pudesse, António Manuel Venda ficaria escondido na sua quinta, só a escrever, a escrever. Talvez um dia ganhe coragem e faça como Peixoto, que deixou de dar aulas de inglês para se dedicar só aos livros - aos que escreve e aos que lê para depois falar deles no DNA.
Para já, Venda concilia duas actividades e ainda tem tempo para, semanalmente, aconselhar os ouvintes de uma rádio algarvia a procurarem nas livrarias nomes como García Márquez, Manuel Rui, Agualusa ou Riço Direitinho. Licenciado em gestão de empresas e pós-graduado em marketing, é o primeiro a reconhecer que «como escritor, teria reprovado em marketing», fazendo as contas aos cerca de dois mil exemplares vendidos de cada uma das suas obras. Mas, contrariando todas as teses aprendidas, recusa-se a escrever o que os outros querem ler e só escreve o que lhe apetece.
Desta vez, apeteceu-lhe escrever uma história de fantasmas (em que nem sequer acredita), que deambulam por Foz de Zimbrais, onde há um homem que queria ser pássaro, um lagarto que se suicidou por amor e um mosquito teimoso. Embrenhado na fábula que ele próprio construiu, acabou por se perder no meio de tantas e tão estranhas personagens e precisou de muita concentração para se certificar de que tudo no livro fazia sentido. Dentro do nonsense.
António Manuel Venda e José Luís Peixoto já estão a escrever novos livros. Dizem que não conseguem parar, apesar dos números das vendas e das contas bancárias. «As modas passam», diz uma das personagens de Venda. É por acreditarem nisso que insistem em ser escritores.

Nuno Costa Santos, A Capital, 10.10.00
Elogios antes da festa
São hoje lançados no Lux dois livros da Temas e Debates: o primeiro romance de José Luís Peixoto e a quinta obra de António Manuel Venda. A Capital apresenta os autores.
Nunca se tinham encontrado. Nunca tinham tomado um copo ou um café juntos para falarem sobre literatura ou sobre a vida. Conheciam-se literariamente, através das personagens que, um dia, criaram numa qualquer madrugada. A Capital antecipou, pois, o primeiro encontro de ambos, que iria ter lugar hoje à tarde, no Lux, durante o lançamento dos livros que editaram recentemente pela Temas e Debates: «Os Sonhos e Outras Perigosa Embirrações» e «Nenhum Olhar».
Seria de estranhar se este encontro tivesse corrido mal. António Manuel Venda, autor do primeiro livro, e José Luís Peixoto, autor do segundo, têm percursos parecidos, escreveram para o DN Jovem e passaram por situações semelhantes na altura em que quiseram editar. Quer o primeiro, quer o segundo, enviaram originais das suas obras para editores que os recusaram e tiveram a «sorte» de, a dada altura, terem encontrado alguém que viu neles um talento a explorar. O premiado António Manuel Venda (por exemplo, recebeu, em 1990, o «Prémio de Literatura» da Secretaria de Estado da Cultura e da SPA e, em 1991, o «Prémio Revelação Inasset» do Centro Nacional de Cultura) só em 1996 é que encontrou o seu editor. «Ele foi excelente: telefonou-me logo a seguir a ter enviado o livro», disse. Após ter editado quatro títulos pela Pergaminho, Venda resolveu publicar a sua última obra pela Temas e Debates «por uma questão de divulgação».
José Luís Peixoto, que nasceu há 26 anos, em Portalegre, enviou o seu primeiro romance para algumas editoras, mas só encontrou verdadeiro eco na Temas e Debates. «Foram muito sinceros comigo», disse o autor, que, antes, já havia publicado «Morreste-me», um livro sobre a ausência de um pai que faleceu, escrito num tom quase confessional. «Morreste-me» chegou depois às mãos de alguns críticos, que normalmente não escrevem sobre estreias. O jovem escritor assistiu, então, à concretização do sonho de ser elogiado por um crítico exigente como Eduardo Prado Coelho. «Fico muito feliz com isso», confessou.
A última obra do autor dos contos de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» é, segundo o próprio, «um pouco da história de um povo e de uma região, que reflecte sobre vários temas: desde questões especificamente rurais até à Internet». António Manuel Venda nasceu em Monchique, no Algarve, e nunca mais saiu de lá, pelo menos em espírito. Em todos os seus livros, faz uma visita aos lugares de infância. Desta vez, vai até um sítio chamado Foz de Zimbrais. É nesta aldeia que as personagens alimentam sonhos excêntricos, como o de voar, e infinitos anseios amorosos. Neste livro, um lagarto, sim, um lagarto suicida-se por amor.
«Nenhum olhar» é um romance assumidamente pessimista. Todo o livro é percorrido por uma ideia de decadência progressiva e irreversível. As personagens, que transportam nomes bíblicos, não conseguem evitar o «fim do mundo», onde já nada há: «Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas (...)» E onde já não resta «Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar». «É verdade que não ponho de parte a ideia de que as coisas podem voltar a nascer, mas, caso isso aconteça, tudo volta a degradar-se», comentou José Luís Peixoto, que ainda acrescentou: «Esta não é a minha visão do mundo, é apenas a visão do mundo que quis dar a este romance».
Este encontro, que terminou com a troca de contactos, foi pontuado por vários momento de simpatia. António Manuel Venda salientou «o fôlego literário» do primeiro romance de José Luís Peixoto e este retribuiu prometendo enviar ao primeiro uma crítica literária positiva que escrevera para o DNA sobre um dos seus livros. Uma troca de elogios antes do lançamento das duas obras, que vai ter lugar hoje, às 18.30, no Lux.

João Paulo Guerra, Diário Económico, 13.10.00
Não sendo um caso singular, não é muito vulgar a relação tão íntima e exclusiva entre um autor e uma paisagem como a que se verifica entre a obra de António Manuel Venda e algumas aldeias imaginárias ou reais da serra algarvia. A identidade deste espaço físico, social e cultural é-nos dada na obra de António Manuel Venda não tanto pela descrição da paisagem, mas através de uma mitologia comum que povoa o imaginário de uma região demarcada na jovem literatura portuguesa pelo autor. A mesma paisagem e até certas personagens de António Manuel Venda percorrem os enredos dos seus contos e romances e podemos reencontrar algumas delas ao ler este livro. «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é a história de muitas histórias, cruzadas segundo uma eficaz narração. Como escreve o autor, «trata-se de assuntos dignos de conversa». A história do lagarto das Cimalhas, que se matou por amor e cujo fantasma se integrou na normalidade possível. A história do Zé da Silva, que tinha a embirração de chegar a ser pássaro e que, como não tinha responsabilidades, podia ir para pardal-de-asa-branca à vontade, nem que fosse no outro mundo. E outras histórias. «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é o quinto livro de um autor jovem, já premiado, que escreve como quem fala, para contar histórias de um universo inesperado e fantástico

Daniel Pina, Algarve Mais, 02.01.01)
(...)
Estamos perante um jovem escritor que consegue recriar de uma forma brilhante a literatura surrealista, com um gosto pelo insólito, pelo absurdo e pelo nonsense. Possui um estilo directo e espontâneo, corrente e enxuto, sem adjectivação, como se fosse uma fluente linguagem falada. O seu último livro, «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações», é uma obra alucinantemente dinâmica, onde o super-fantástico se mistura com o poético, o lirismo do sentimento, do romantismo, do amor e do carinho.

Dina Adão, Jornal do Algarve, 18.01.01
(...)
António Manuel venda-nos os olhos para depois nos colocar num mundo tão mágico quanto real, pleno de figuras pequeninas e bonitas que atravessam a trama com um toque de nonsense e humor. «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações» caminha através da áurea de um mundo rural traçado por um local imaginário na zona de Monchique: Foz de Zimbrais.

S/ indic. autor, Diário de Leiria, 27.10.00
O livro transporta-nos a Foz de Zimbrais, uma aldeia onde «a morte de um burro ou um desgosto amoroso podem ser grandes acontecimentos». Um livro onde o autor revela uma imaginação surpreendente, ou não fossem os seus personagens, por exemplo, um homem que anda a treinar-se para pardal-de-asa-branca, um lagarto que se suicidou por amor ou até uma bruxa sem nariz e que costuma pescar. Um livro cativante e divertido.


Apresentações

Texto de João Paulo Guerra, lido na apresentação do livro em Lisboa, 10.10.00
Quero salientar que a minha relação com a literatura é a de um simples leitor e por isso considerei o convite inesperado. Não sou crítico literário – embora seja muito crítico daquilo que leio, como de tudo. Como jornalista profissional tive, por vezes, a oportunidade de promover os livros, os escritores e a leitura, como uma fonte de conhecimento e de prazer. Em muitos anos de actividade jornalística, um dos trabalhos que me deu mais satisfação profissional e pessoal foi precisamente uma série de reportagens sobre livros, sobre a paisagem, o cenário – físico, social, cultural e humano –, de algumas obras da literatura portuguesa. Nessas reportagens parti à procura da realidade subjacente à ficção de um certo número de obras do último século da literatura portuguesa.
Isto passou-se entre 1994 e 1995, antes de António Manuel Venda publicar o primeiro livro, de contos – «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» –, em 1996. Se voltasse hoje a essas viagens com livros, certamente procuraria na serra algarvia, em Monchique, mais concretamente, o rasto da obra do autor.
Não sendo caso singular, não é muito vulgar esta relação tão íntima e tão fiel – exclusiva, por enquanto – entre um autor e uma paisagem. Toda a obra de António Manuel Venda, até hoje – o autor, felizmente também para os leitores, tem muitos e muitos anos de criação literária à sua frente –, os cinco livros já publicados, explora este espaço e esta figura que é o Oeste da serra algarvia, Monchique, em concreto, e algumas aldeias imaginárias da serra.
A identidade deste espaço físico, social e cultural é-nos dada na obra de António Manuel Venda, não tanto pela descrição das encostas de urzes, azevinhos, castanheiros e medronheiros que resvalam dos picos vulcânicos da serra, não por uma paisagem tatuada nas páginas dos seus livros, mas através de uma mitologia comum que povoa o imaginário das histórias populares. As histórias fantásticas que António Manuel Venda ouviu – «coisas que eu ouvi», disse o autor numa entrevista – e que conta nos seus contos e romances são um universo rural perfeitamente definido e localizado, de personagens e enredos fantásticos do maravilhoso popular, contado, recontado e recriado num ciclo sem fim, porque a imaginação é infinita.
«Do real nós já estamos fartos», diz António Manuel Venda noutra entrevista, acrescentando que por estar farto do real é que não é jornalista. Mas eu, que sou jornalista, posso garantir-lhe que hoje a realidade é cada vez mais inesperada e absurda.
Não considero absolutamente necessário afixar um rótulo ao autor, filiá-lo num grupo, numa escola, localizá-lo entre o mito e a realidade, o realismo ou o surrealismo. Mas parece-me indiscutível que António Manuel Venda, como os surrealistas, opõe a loucura e o sonho à existência real e objectiva das coisas. As suas personagens e histórias não obedecem aos cânones da coerência, antes viajam pela exploração dos sonhos e dos símbolos. No plano formal, a sua escrita é espontânea e fluída, tal como a dos surrealistas; e, como eles, segue o primado da imaginação na procura de um mundo alternativo ao quotidiano. Talvez o possamos situar nas proximidades do realismo fantástico dos escritores hispano-americanos. O autor, aliás, não esconde nem disfarça o seu fascínio por criadores do real maravilhoso que superaram a representação realista e naturalista do mundo.
A mesma paisagem e até certas personagens de António Manuel Venda percorrem os enredos dos seus contos e romances. Reencontrei, ao ler «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», S. Bartolomeu das Osgas, povoação vizinha da Foz de Zimbrais, e o Raposo do Besteiro, contador de histórias, locais e figura que conhecia de «Até Acabar com o Diabo», outra obra do autor. Mas, acima de tudo, reconheci muitos fantasmas. Afinal, e como afirma o autor, os escritores aproveitam-nos para os romances, por mais difícil que seja inscrever um fantasma onde quer que seja. A excepção que confirmará a regra são os cadernos eleitorais, de onde foi necessário, recentemente, varrer largos milhares de eleitores-fantasmas. Mas a verdade é que eleitores-fantasmas não é a mesma coisa que fantasmas de eleitores.
Contador de histórias que ouviu em Monchique, antes, durante e depois de rumar para Lisboa – onde se licenciou em gestão de empresas e pós-graduou em marketing e mercados financeiros –, António Manuel Venda cultiva a oralidade na sua escrita. A imaginação e a criatividade que acrescenta a essas histórias de província não lhes retira nada da sua origem de histórias faladas. A técnica narrativa e a estrutura de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» constituem um magnífico exercício da arte de contar, de transmitir um enredo, de descrever uma personagem, desde os seus aspectos mais pitorescos e hilariantes, aparentemente superficiais, até ao mais íntimo do seu perfil psicológico.
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» – e fiquem desde já descansados porque as embirrações não duram eternamente, avisa o autor lá para o fim do livro – é a história de muitas histórias, cruzadas segundo uma eficaz narração. Como escreve o autor, trata-se de «assuntos dignos de conversa», à lareira em Foz de Zimbrais, onde faz frio no Inverno, na tasca do Macacácio, ou nas ruas da aldeia, para o caderno de apontamentos de um jornalista que está a preparar um trabalho sobre o contador de histórias. Ora cá está um jornalista farto do real.
A história do Lagarto das Cimalhas, que se matou por amor atirando-se de um penhasco abaixo, e cujo fantasma se integrou na normalidade possível. A história do Zé da Silva, que tinha a embirração de chegar a ser pássaro e que, como não tinha responsabilidades, podia ir para pardal-de-asa-branca à vontade, nem que fosse no outro mundo. A história da velha Luzia dos Engreneiros, velha bruxa sem nariz, ou melhor, com um nariz novo, dos de Carnaval. A história do Mau Serviço, um caiador que nasceu canhoto, veio a ficar maneta da mão esquerda e chegou a caiar um fantasma, o que lhe valeu uma entrevista para uma televisão e muitas para rádios. Certamente também a Rádio Monchique, mas talvez não no programa sobre agricultura que começa com um burro a zurrar. Talvez o burro tivesse sido objecto de negócio entre o Manel da Brica e o Empurra Burros. O que é certo é que os agricultores não se ofendem com o gingle da Rádio Monchique. São uma espécie em vias de extinção, por ordem de Bruxelas. Por exemplo, o Peitinho de Lagarto, que era cabreiro e se desfez dos animais a troco de uma indemnização por conta da Política Agrícola Comum e agora tem um negócio de cestos e canastras. A história do Bago de Milho, que vai à missa a Monchique porque nas outras igrejas os sermões não fazem eco capaz de espantar o bafo do Diabo. A história e as histórias do Raposo do Besteiro, que contava enredos que metiam sempre morcegos e é agora o cronista do terrível mosquito Siribano Loisinha, que faz o trânsito de Moçambique para a Península Ibérica, do pescoço de uma girafa para o gume da espada de um rei povoador. A história do Escalavardo Homenzinho, que não tinha ideia de se transformar pois pensava que já era um escalavardo. A história aflorada dos que ouvem histórias em Foz de Zimbrais, entre as quais uma história de amor com incursões pelo litoral. Em Foz de Zimbrais já deram pelo narrador e registaram que vai ver o mar, muitas vezes. Ainda acaba personagem de um enredo, talvez a personagem do homem que queria ser onda, ou navio.
O imaginário destas histórias de António Manuel Venda pode vir do fundo dos serões de província, das histórias ouvidas antes e contadas depois pela avó, em Monchique. Mas este é um universo imaginário e maravilhoso que permanece nos nossos tempos. Pelo romance passam já em forma de fantasmas o Estado Novo e a PIDE. E quando o Zé da Silva andava a tirar apontamentos dos saltinhos dos pardais, naquela ideia de vir a ser pássaro, andava Portugal a negociar outros voos, concretamente a entrada para a Comunidade Europeia.
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é o quinto livro de um autor de 32 anos. Um autor premiado pelo Instituto Abel Salazar, pela Secretaria de Estado da Cultura, pela Sociedade Portuguesa de Autores, pela Câmara Municipal de Almada, pelo Centro Nacional de Cultura e pela Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses… que nunca descobriu maneira de lhe entregar o prémio. Um autor que escreve como quem fala, para contar histórias de um universo inesperado e fantástico.
Quero com tudo isto dizer que estas personagens, estas histórias, esta escrita constituem uma grande fonte de prazer. Haverá melhor recomendação?

Texto de António da Silva Carriço, lido na apresentação do livro em Monchique, 14.12.00
Uma leitura d’ «Os Sonhos...» do António Manuel Venda
O último livro do António Manuel Venda tem por título «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações».
Os críticos literários têm-se debruçado atentamente sobre a sua escrita e o jovem escritor (32 anos – 5 obras publicadas) tem vindo a alcançar um merecido êxito.
Porque muito já se disse, e sem a mínima pretensão a crítico, quero apenas usar do direito que me assiste de dar a minha opinião sobre o livro em causa. Por dois motivos: primeiro, pelo prazer que me dá partilhar, discutir até (se possível) as emoções da leitura; segundo, pela quase obrigação que se impõe de alguém de Monchique dar o seu parecer, dizendo de si, acerca de um escritor de Monchique. Estas duas razões bastam para agradecer-lhe o empenho que tem manifestado em levar o nome da nossa terra a muita gente que desconhece a sua existência. Empenho conseguido plenamente, pois os seus livros têm tornado Monchique num lugar mágico. (De tal forma que alguns dos seus leitores poderão duvidar que exista...). O chão que as suas fabulosas personagens pisam é o nosso. Esse Algarve profundo somos nós. Com as nossas histórias (e as dele), com os nossos costumes e vivências. Que ele preserva, recriando no presente um passado de espantos e projectando-os no futuro. Como raízes.
É muito pessoal, muito minha, a leitura que faço destes «Sonhos».
A capa... Reproduz um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso (óleo s/ tela, c/ colagens) pertencente ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian. É um dos trinta e sete trabalhos do pintor que, com imenso êxito, durante um ano, estiveram recentemente expostos ao público de Nova Iorque, Washington e Chicago. Deste quadro e por essa ocasião disse um crítico norte-americano (Alan Artner, no Chicago Tribune): «é uma das mais impressionantes telas da pintura modernista (...) constitui uma obra densa e fragmentada (...) criando uma frenética colcha de retalhos que não tem paralelo na arte do seu tempo».
Não sei se será demasiado pretensioso aplicar a parte final desta crítica ao livro a que a pintura serve de capa. Mas, com o devido respeito, atrevo-me a dizer que também o livro do António Manuel Venda é uma «obra densa» de delírios mágicos, «fragmentada» de sonhos, «frenética colcha de retalhos», em que «o frenesi é o delírio em continuidade» (conforme o definiu um médico do séc. XVIII).
O título... Revela uma das «embirrações» do autor, que tem sido uma constante em toda a sua obra: o sonho. Neste seu livro, mais do que em qualquer outro, os sonhos são sempre embirrações e as embirrações uma profunda necessidade de sonhar. Teimosamente. Eu sei o que isso é, porque também eu sofro dessa fome. Talvez de uma outra maneira, mais íntima, menos truculenta, mais idealista, mas sempre necessidade insaciável do sonho.
Abri o livro e li as primeiras linhas...
«Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns de certeza são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses.»
Parei, admirado – mas este não é o António Manuel Venda que eu conheço... O que é isto? Talvez o fermento do sonho... E acabei o parágrafo.
«Esses são bem reais, e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.»
Agora, algumas das personagens dos retalhos mais coloridos desta manta cosida de onde a onde, com o fio de um misterioso novelo de amor:
A velha Luzia dos Engreneiros, bruxa que ficou sem nariz na explosão do caldeiro da alquimia, mas que voltou a tê-lo de papelão, com óculos de carnaval. Na vassoura voava fora do alcance da mão de qualquer um, fazia a vida negra ao Cabide (hortelão/ coveiro), aos guardas, a toda a gente, mas... pescava para dar de comer aos pássaros. Pág. 79...
«Foi o vento, se calhar, carinho, que sempre me empurrou para ti. O vento que eu vejo a fazer-te esvoaçar o cabelo e que às vezes dá lugar aos barcos da minha imaginação. Os barcos verdadeiros servem apenas para estragar os meus momentos na falésia. Porque em geral são traineiras que não se integram na minha ilusão, na minha interminável ilusão de ti.»
O Lagarto das Cimalhas e o seu fantasma – que dava assobios quadrados às lavadeiras e se suicidou por desengano amoroso. Convertido em fantasma, permaneceu mulherengo e perseguia as varredoras das ruas da freguesia. Pág. 31...
«Há mortos que mereciam ser estudados com algum detalhe, se houvesse uns subsídios do Estado ou mesmo das Comunidades, há mortos, dizia eu, que morreram sem sonhos e sem embirrações.»
O Mau Serviço – caiador que pintava de branco tudo o que lhe aparecia pela frente do pincel. Conseguiu marcar com uma lista branca o fantasma do lagarto, mas este vingou-se e comeu-lhe a mão esquerda. Só que o pobre do homem era canhoto... e com uma só mão, se pegava no balde, não podia pegar no pincel, e se pegava no pincel, não podia pegar no balde ou agarrar-se à escada. Pág. 19...
«Quando estou em Foz de Zimbrais, vou uma vez por outra cortar o cabelo a Monchique ou então a Portimão, junto do mar, onde te vejo. O mar, flor, onde às vezes me perco no teu olhar de mel desenhado na água e no som de búzio que não me canso de imaginar para a tua voz.»
O duvidoso fantasma do Perdido da Arrojela – enterrado (sim ou não?) no Cemitério de Monchique. Pág. 11...
«O caso do Perdido da Arrojela é muito confuso. E também mete uma certa pena. Já se falou em se arranjar uma reforma para o desgraçado, uma coisa qualquer de sobrevivência ou invalidez. Mas o presidente da Junta de Freguesia disse logo que isso era quase impossível de conseguir. E o presidente da Câmara de Monchique foi da mesma opinião. É muito difícil inscrever um fantasma no que quer que seja, ainda que se trate de um fantasma por engano.»
O Leonardo/ Leopardo – que era um desbocado. Uma vez a professora, por castigo, atou-lhe uma corda à volta da cabeça, com duas folhas de nespereira a fazerem de orelhas de burro. E o pobre implorava que voltassem a chamar-lhe Leopardo em vez de Burro. Mais tarde foi para carcereiro. Pág. 58...
«Em Monchique, carinho, o cinema acabou deve fazer mais de quarenta anos. Há pessoas em Foz de Zimbrais que ainda se lembram de ter lá ido ver alguns filmes, mas já não são muitas. O cinema ficava exactamente na mesma rua da cadeia e o carcereiro tinha o costume de fechar os olhos às saídas dos presos que lhe pagavam para irem assistir aos filmes.»
O Raposo do Besteiro – filho de uma raposa e de pai incógnito, contador de histórias (verdadeiras!!!). Uma vez caçou a Morcega Leôncia numa mina. Por não dar conta dela, acabou por matá-la. Mas a Morcega começou a aparecer-lhe em fantasma enrolado num pano branco de cozinha... Quando o Raposo foi julgado por dizer que ele próprio tinha afogado a namorada num tanque, houve grande reboliço em Monchique. Pág. 89...
«Na altura do julgamento do Raposo do Besteiro, a sala de audiências do Tribunal de Monchique não chegou para as encomendas. Tanto que muitos curiosos ficaram à porta para assistirem à vez, e outros encostaram escadas à parede, mesmo junto das janelas da sala de audiências. (...) Uma viúva que morava no primeiro andar mesmo em frente do tribunal vendeu mais de duzentos bilhetes, que davam direito a ir assistir das janelas dela durante cinco minutos cada. Tinha dos mais variados preços, conforme fosse para o interrogatório do Raposo do Besteiro, ou para a decisão do juiz, ou ainda para a parte do padre de Monchique, que também tinha sido chamado para testemunhar. (...) Mas as diferenças de preço que a viúva fixou para os bilhetes acabaram por não ter significado. E isso porque rapidamente apareceram quatro ou cinco candongueiros que inflacionaram tudo.
– Houve até um lavrador que deu uma vaca em troca de um bilhete.
– Não me diga vossemecê uma coisa dessas! Uma vaca?!
– Isso mesmo, uma vaca!
– Bem, se tivesse dado uma filha era pior.
– Sim, também é verdade.»
Depois, há o Cabrita, que morreu assado num forno onde dormia, os «oveiros» Zé dos Ovos e Zé Gemada e...
O Escalavardo Homenzinho – 1,40m de altura e que, por ter a mania de ser escalavardo, assaltava os galinheiros. Uma noite, caiu numa ratoeira que lhe armaram e ficou com a cabeça esborrachada. Foi encontrado com uma galinha morta entre os poucos dentes que tinha. Pág. 30...
«À minha passagem pela faculdade, querida, não devo dar uma grande importância. Porque estava longe de imaginar que no mundo existisse alguém cujo olhar prendesse o meu logo no primeiro segundo, durante uma batida do coração, ou em menos tempo que o esboçar de um sorriso.
– Agora não te deixo mais.»
No meio de tudo isto, a bruxa pontificava. E dava cabo da cabeça aos guardas. Pág. 42...
«– Como é que a velha Luzia dos Engreneiros nunca transformou nenhum guarda num burro, isso é que eu nunca hei-de perceber.
– Olhe, se calhar até era um bem de caridade aqui para a gente.
– O quê?! Um guarda a menos?!
– Não, um burro a mais.»
O Zé da Silva é a personagem-sonho, o homem que queria voar cada vez mais alto, no desejo de ser pássaro, mas um pássaro diferente dos outros – um pardal-de-asa-branca. Ele ia «cortar as penas» ao barbeiro e prendia ramos de palmeira aos braços, à cintura e atrás... e acabou «voando» da torre da igreja cá para baixo, onde ficou feito em nada. O olho esquerdo do Zé da Silva desapareceu na calçada e nunca mais foi visto...
«A princípio, meu amor, ninguém imaginava que o sonho de voar do Zé da Silva acabasse por levá-lo à morte.» (Pág. 35) «O Zé da Silva arranjou um sonho, um sonho só para ele.» (Pág. 50) «Eu não seria capaz de morrer pelo meu sonho, por ti, flor, pela simples razão de a morte me levar para longe, definitivamente para longe de ti. O Zé da Silva é um caso diferente, e tudo porque levou o sonho de voar dentro do próprio corpo.» (Pág. 75).
Pág. 190...
«Não sei se a velha Luzia dos Engreneiros dá pela minha presença, quando me deixo ficar horas e horas no alto da falésia a contemplar-te. Quem sabe, meu amor, aquilo que lhe vai na cabeça? Ou no coração, ou na alma, ou simplesmente nos olhos.
– Não desapareças agora!
– ...
– Não ligues a esta onda!»
«Delírios» é o título da crítica de Helena Barbas no Expresso. Dela retiro este parágrafo:
[O livro é] «Um sistemático delírio narrativo, histórias absurdas a um ritmo alucinante, cheias de humor e ironia, contadas numa linguagem rigorosa, que enfeitiçam o leitor.»
Para mim, estes delírios são o calor de uma febre criativa e a necessidade de refrescar e transvazar o turbilhão de visões dessa febre. O livro é um alucinante carrossel de figuras, de situações e fenómenos de extraordinária maravilha, que nos deixam tontos, nos desequilibram e se convertem no tal frenesi – num delírio em continuidade.
Quanto à escrita, o António Manuel Venda tem uma maneira de o fazer muito sua. Sempre lhe apreciei o estilo (chamemos-lhe assim) directo, espontâneo, corrente, enxuto, quase limpo de adjectivação, como se fosse uma fluente linguagem falada. Este livro marca uma viragem na sua escrita. Embora o delírio que lhe é próprio persista, os diálogos e a forma como introduz os interlocutores (umas vezes sem identificação, outras apenas com um vocativo) é inovadora, uma criação sua.
Interessantíssimo, também, o «salpico» de pinceladas coloridas e musicais, de lírica amorosa. Mas quem é este «amor», este «carinho», esta «querida» ou esta «flor»? No labirinto da escrita, o leitor o descobrirá...
Com todas estas características, ele consegue recriar entre nós, e explorar de maneira brilhante, a literatura surrealista.
A propósito, vale a pena lembrar o Grupo Surrealista de Lisboa (1947), com António Pedro, José-Augusto França, Alexandre O’Neil e Mário Cesariny, como os mais legítimos representantes de um surrealismo português, que consistiu «no recurso a uma técnica, no gosto do insólito, na preferência pela metáfora dinâmica e transfiguradora» e que são característica evidentes n’ «Os Sonhos...» do António Manuel Venda.
O movimento surrealistas foi uma corrente de pensamento que surgiu em França em 1916. Foi Apollinaire quem usou pela primeira vez este adjectivo para qualificar uma sua obra, com o significado de super-fantástico.
A palavra correcta em português é «super-realismo» ou «sobrerrealismo» igual a «para além do/ acima do/ distanciado do» realismo. Isto ajuda-nos a melhor entender a ideia.
Quanto à sua definição e essência, no «Manifesto do Surrealismo» (1924) André Breton define o surrealismo como «um mero automatismo psíquico, pelo qual nos propomos exprimir quer verbalmente, quer por escrito, quer de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensar, ditado do pensamento 'com a ausência de qualquer fiscalização exercida pela razão', fora de toda a preocupação estética ou moral».
No seu «Segundo Manifesto» (1930) Breton diz: «Tudo leva a crer que existe um ponto do espírito desde o qual 'a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessam de ser percebidos como contradições'. Ora, em vão se buscaria na actividade surrealista outro móbil que não seja a esperança de determinar este ponto.»
«O surrealismo é uma experiência da tomada de contacto, efectuada pessoalmente pelos seus próprios iniciadores, com 'uma profunda actividade que se manifesta principalmente nos sonhos', nos estados de sonambulismo, nos automatismos e transes.»
Já se escreveu que «cumpre considerar o surrealismo como uma das 'formas do impulso' que em todas as épocas e em todos os países 'animou os homens mais desejosos de se libertarem dos seus limites'». /os destaques das plicas são meus/
Debruçando-me sobre estes conceitos (com especial incidência nos desdtaques entre plicas) e pondo-os em paralelo com «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», parece-me deduzir que o António Manuel Venda se propôs escrever um livro aplicando a par e passo a teoria surrealista ou, o que é mais certo, que o livro se encaixa perfeitamente na essência do movimento surrealista. Por isso o defino como o renovador do surrealismo português.
E agora, voltemos, «em directo», ao livro. Pág. 127...
«O Mau Serviço deu entrevistas a jornais importantes, e também a uma televisão e a muitas estações de rádio. E tudo por causa de ter cometido a proeza de caiar um fantasma.
– O Mau Serviço sempre foi amigo de se gabar, de forma que, por esses dias, não perdeu a oportunidade de falar dele e do pincel que tinha passado pela lombeira do fantasma do Lagarto das Cimalhas.
Além disso, o Mau Serviço aproveitou para informar todo o país de que se a velha Luzia dos Engreneiros, que andava desaparecida nos últimos tempos, se atrevesse a aterrar em Foz de Zimbrais, se isso acontecesse, era capaz de a pôr branca como um boneco de neve. E a vassoura também.
– E a puta da vassoura também! Ou a vassoura da puta, ou melhor, a puta da vassoura daquela puta.
– O senhor modere as palavras, por favor.
– ...
– É que estamos em directo.»
Depois disto, porque estamos em directo, e as palavras são dele, autor, o leitor que o condene ou aplauda, conforme o seu impulso...